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A Metamorfose de Franz Kafka

Foto do escritor: Bruno PhilippeBruno Philippe
a metamorfose de franz kafka

A Metamorfose de Franz Kafka é um daqueles livros que incomodam no melhor estilo Tolstói. Tudo nele é incômodo — desde a premissa até a linguagem que Kafka deposita sobre nossos ombros de modo quase insuportável.


A narrativa, que se apresenta de forma estarrecedora — pelo menos àqueles não familiarizados com a obra — já define seu tom incômodo: um rapaz, Gregor Samsa, que em certo dia acorda metamorfoseado em um inseto.


Por si só, a premissa já causa desconforto, mas Kafka intensifica essa sensação ao descrever o processo de metamorfose para um inseto "monstruoso, asqueroso", que solta fluidos e tem problemas de mobilidade, sendo grotesco ao ponto de causar repulsa. Essa escolha é particularmente importante para a mensagem central que Kafka deseja transmitir em A Metamorfose.


A assinatura literária de Kafka consiste em apresentar, por meio de contos ficcionais, situações que não são fantásticas como nos contos de fadas, mas profundamente incomuns. São personagens e circunstâncias tão inusitadas que nos incomodam. Nem sempre as narrativas são estranhas como a de um homem que se transforma em inseto; às vezes, envolvem situações como um indivíduo processado e condenado sem saber o motivo.


Em A Metamorfose, Kafka traz à tona o tema de um sujeito corroído pelas pressões da realidade, como o trabalho exaustivo que o isola e o priva de suas conexões sociais, levando-o a um estado anímico — um estado de espírito tão degradado que se torna "insético", desprovido de verdadeira humanidade.


A grande lição que aprendi com esse conto, embora não seja o estilo que mais aprecio, é que existe uma linha grave nas interações do homem com aquilo que realmente importa; uma vez rompida, não há reparos, ou, quando há, o reparo é doloroso e difícil.


À medida que a narrativa avança, isso se torna evidente quando Gregor, em diversos momentos, tenta se comunicar com a mãe ou a irmã, mas é impedido por sua nova condição. Repetidamente, lamenta o fato de que coisas outrora triviais, como simples momentos em família, agora são impossíveis. Entretanto, não acredito que a obra trate de um saudosismo simplista em que a personagem percebe o valor das coisas apenas por estar doente. Para Kafka, isso seria uma abordagem óbvia e clichê. Não!


Na minha opinião, A Metamorfose aborda essa situação com um agravante: Gregor, mesmo com suas faculdades físicas intactas — ele ainda estava em casa e não foi expulso de imediato —, sente a estranheza do distanciamento e da perda de conexão com seus entes queridos.


É como alguém que se vê como parte da família, mas percebe que é um estranho ao tentar contato, um invasor que, por sua natureza incomum, causa repulsa. Ele não faz mais parte do cotidiano, e qualquer interação parece forçada e absurda.


A repulsa que Gregor transmite é a de alguém que, após anos sem um gesto de carinho, como abraçar sua irmã ou expressar admiração ao pai, ou mesmo ouvir uma notícia num jantar, torna-se tão distante que passa a ser visto como um intruso, um autômato, reduzido a um estado anímico — sem emoções ou vida interior.


Esse é o verdadeiro dilema de Gregor: estar fisicamente presente, com a possibilidade de contato com a família, mas tão esvaziado pela rotina imposta pelo trabalho que perdeu a humanidade necessária para nutrir os laços afetivos. A ironia trágica é que, apesar de trabalhar para sustentar o lar, sua dedicação exaustiva o transforma em um ser incapaz de desfrutar de seu próprio lar.


Nesse ponto, a impossibilidade de trabalhar o força, em sua condição limitada, a refletir sobre os momentos antes banais que agora amargamente lhe escapam.


Esse dilema se impõe de forma amarga quando somos forçados por circunstâncias externas — como uma doença ou um evento traumático — a refletir sobre nossas prioridades. Essas situações nos obrigam a pensar sobre nossas falhas e escolhas sem a oportunidade de mudança ou reparação que algo tão simples quanto uma xícara de chá ao entardecer poderia ter proporcionado. Se apenas saíssemos do automatismo cotidiano e reservássemos momentos para refletir, conversar e apreciar, a vida talvez fosse diferente.


Esse é o agravante de Gregor. Em uma espécie de tragédia moderna, ele, após ser agredido pelo próprio pai, que agora o vê como um ser insignificante, amarga seus últimos momentos de vida. Reflete, impotente, sobre tudo o que perdeu em termos de simplicidade e aconchego familiar ao priorizar uma existência automática.


O clima cinzento e amargo se intensifica a cada página, culminando no desfecho. A redenção de Gregor se dá em sua mente, quando um feixe de luz matinal parece tocar sua cabeça deformada, enquanto experimenta seus últimos momentos.


"Recordava-se da família com afeição e amor. A sua opinião de que precisava desaparecer talvez fosse ainda mais decisiva do que a da irmã. Permaneceu em seu estado de meditação vazia e pacífica até o relógio da torre bater três horas da manhã. Ainda presenciou o início do clarear geral lá fora pela janela. Então, sua cabeça se afundou sem que fosse de sua vontade, e das ventas correu seu último e fraco suspiro."

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