Onde está o sábio?
Um linguista em certo artigo apontou que o “homem enciclopédico” – aquele que era capaz de dialogar sobre vários assuntos – já desapareceu e havia dado lugar aos especialistas. O sábio, portanto, foi abolido. Reflitamos sobre este aspecto uma vez que no bojo destas questões parecem estar em jogo os propósitos da educação e suas finalidades.
De fato, aquela vida de estudos integral, que se encaminha mais rumo a um projeto de vida consistente e que avistava seu fim apenas na morte – em detrimento de vias pragmáticas – já não está mais em voga e cedeu lugar às titulações acadêmicas.
Foi sobrepujado o conceito que o pároco francês, A.-D. Sertillanges, costumava chamar de o estudo das ‘ciências comparadas’; a necessidade tanto de aquisição de uma cultura geral que permita a definição da abrangência de uma vida de estudos – no sentido mais clássico possível que o termo possa carregar – ou a apreciação das coisas mais profundas como a arte e as boas conversas, quanto de uma possível especialidade tardia. Este conceito remonta às noções de Cícero acerca da cultura na qual é postulado que há duas coisas que o homem deveria cultivar tão logo possível: o solo e a cultura, relacionando assim a vida de estudos com o ofício da agricultura – um labor constante que pressupõe esforço, crescimento, e obviamente a colheita de bons frutos. Com efeito, quanto maior a extensão do solo, diversificado e mais fértil, maiores as chances de êxito nesta operação.
Excelentes homens foram especialistas. Gigantes foram enciclopédicos, sábios.
Basta pensarmos em vultos como a grande gama dos filósofos da Antiguidade e Idade Média, que de medicina à teologia, contribuíram com legados inigualáveis de conhecimento e sabedoria tal que não apenas resolvem problemas particulares, mas universais. Talvez estes pensadores encontrem seu arquétipo na figura do estagirita Aristóteles, que, imbuído de um espírito tão livre quanto o vento, pensou sobre botânica e biologia, ética, física e metafísica, psicologia, poética e retórica, lançando não apenas as bases para a maior parte dessas ciências, mas lapidando o próprio conceito que temos de ciência moderna moldado a partir de suas especulações metódicas.
E se Aristóteles tivesse se formado apenas em botânica? E John Locke apenas em medicina? E Agostinho apenas em retórica? E Lewis apenas a carreira militar? Os exemplos são incontáveis.
O arcabouço que permitia a especialidade em uma ou outra área assentava-se sobre uma base de cultura geral tão sólida e ampla, que tornaram estes vultos em verdadeiros eruditos. E o que pretendemos por erudição?
Erudição, longe da moderna conotação pejorativa da figura de um arrogante distante da realidade dos demais e que vive cercado de livros, vinhos e charutos, sua etimologia encontra significado na palavra latina ērudiō; o prefixo ē significa “fora”, e rudiō vem de rudis e significa “rudeza”, ou seja, o termo pode ser traduzido em algo como “tirar a rudeza”, e é isto que o sábio busca por meio da educação e todas as demais coisas – livrar-se de tudo aquilo que embrutece e revestir-se de tudo aquilo é Belo, Bom e Verdadeiro.
Se o que chamamos por sabedoria é delimitado pela atividade do sujeito que consegue articular a vida de maneira eticamente idônea ao olhar para si mesmo, e de modo especulativo ao olhar para o universo, influenciando outros com conhecimentos tais que também os impactam não apenas no nível acadêmico, mas também no mais personalíssimo, é certo que podemos arriscar dizer que é muito escasso o grupo ao qual nos dignamos a identificar pela alcunha de sábios ou de polímatas, e com certeza estes não são produzidos pelas academias (modernas) – até por uma questão de objetivos; as universidade buscam formar profissionais e não humanos (humanitas; no sentido ciceroniano que o termo carrega).
E que importa que os sábios desapareçam? O arquétipo do sábio traduz algo que deveria ser inerente a todos: a busca pela Verdade. Seu desaparecimento justifica em muito a vertigem educacional vigente e a coroação do relativismo, que parece mostrar sinais de enfermidade. Senão, vejamos.
O Sábio e sua necessidade
Se cada um tomasse uma especialidade estrita e fornecesse substrato epistêmico de sua própria especialidade para o conhecimento geral da humanidade – conforme parece ser o propósito atual – ainda assim dependeríamos de um polímata, um sábio, que se aplicasse a esquadriar as áreas diversas do saber no intuito de compilar algo útil primeiro para si e segundo para os demais, avançando dialeticamente no conhecimento, ou, a escolha óbvia seria que cada um navegasse em sua própria especialidade e tomasse isso como substrato total para entender o mundo; os linguistas gerariam conhecimentos para mais linguistas, o matemático para mais matemáticos, o engenheiro para engenheiros, e no percurso deste ciclo, uma ou outra coisa útil e tecnológica surgiria para uma humanidade imersa em transtornos psicológicos e que ainda não respondeu às perguntas mais básicas, nem refletiu sobre si mesma.
Neste ínterim, surge o ponto crucial desta breve reflexão: o sábio e seu arquétipo, pelo menos no sentido em que estamos trabalhando, existe por um objetivo maior – a busca pela verdade que não pode ser obtida por uma ou outra área, mas apenas por um conjunto bem ordenado de disciplinas e virtudes as quais prestam serviços ao gênero humano, indiscriminadamente.
Uma nota importante a ser adicionada neste ponto é que a especialidade propriamente dita não é a causa dos males – mesmo Sertillanges ressaltou a importância desta. Sem aplicações específicas, não teríamos soluções para problemas que são de ordem amiúde específicas. A reflexão delineia a necessidade do desenvolvimento da cultura geral, tanto para desfrutar da Vida Feliz (De Vita Beata), quanto para perseguir coisas mais elevadas, e isto apenas um sábio – aqueles que são amigos da sabedoria – podem fazer, e então poderão definir suas respectivas especialidades.
A questão é que a abolição do sábio deve ser entendida no abandono da busca da verdade pela busca de titulações e vestibulares, e na redução do serviço da educação ao mero passar em provas. O desaparecimento do “homem enciclopédico” tem muito a dizer sobre os dilemas atuais e se faz necessário pensarmos mais uma vez sobre os propósitos da educação.
Notas aristotélicas para definição dos propósitos da educação
Novamente em Aristóteles, sua epistemologia apresenta algo interessante: nossos sentidos fornecem informações do mundo para nossa memória, onde através do repertório que adquirimos ao longo do tempo, inicia-se um processo de confrontação dialética de dados anteriormente aprendidos que nos possibilitam ao longo do tempo desenvolvermos a techne (arte), no caso das coisas contingentes, particulares, nossa vida cotidiana; e a epsteme (ciência), que se refere às coisas universais e imutáveis. Em outras palavras, dependerá do tamanho do repertório – da cultura geral – adquirido pela educação e pela experiência, a capacidade tanto de enunciarmos as verdades e delas nos servimos – pragmaticamente, por óbvio – através do desenvolvimento das mais variadas artes como medicina, engenharia, e afins, quanto de executarmos com precisão a lógica no que tange às operações dos silogismos dedutivos – do universal para o particular – e das induções – do particular para o universal -, papel da epsteme que ruma em direção ao verdadeiro saber e se relaciona às aplicações universais, pois quanto mais verossímil for um dado abstraído, e tanto mais universal, mais próximo da verdade estará, sendo isto que a lógica, pertencendo ao corpo encíclico das artes liberais, portanto de caráter prático, busca ajustar; o raciocínio humano pelo estatuto da verdade.
Tomemos por exemplo a seguinte operação matemática “1+1=2”. Esta operação se deu nos tempos de Abraão e será daqui mil milênios com o mesmo resultado, portanto, daí dizer que é um conhecimento verdadeiro uma vez que na ordem dos discursos que vão de falso à apodíctico, tal enunciado atinge um alto grau de certeza. É neste sentido que a verdadeira educação tem por propósito conhecer a Lei Natural ou Orgânica e as causas relativas ao estudo da matéria e das formas (as dimensões da realidade), cujas manifestações se dão na aplicação do que é eterno, universal e imutável, e que, portanto, participam do verdadeiro saber – alvo este que deveria ser perseguido em qualquer disciplina e sem o qual todo saber se torna apenas flatus vocis. Ainda neste sentido, pense em quantas coisas há para se conhecer antes de definir o que poderia ser chamado de especialidade.
Estas concepções então vão de contrapartida ao senso de especialidade estrita ou mero aprendizado de informações, uma vez que para Aristóteles, todos nós temos as faculdades e potências descritas acima e a atividade contemplativa – a vida reflexiva – seria então a forma de perseguir o télos, a causa final do homem. No limiar destas proposições, argumentamos então que seria muito pouco para seres dotados de tais disposições, fechar-se para a vida reflexiva – que possui maior valor ontológico uma vez que possui finalidade em si mesma -, e apenas utilizar tais disposições para adquirir um papel contendo seu nome e o testemunho de que concluiu um curso com êxito em detrimento de conhecer as verdades imutáveis, traduzidas para nós, os cristãos, no Logos, no Verbo Encarnado, Cristo Jesus.
Há quem possa perguntar, ainda que descabidamente, “porque entender o mundo?”, Tal sujeito tomaria a educação apenas no sentido utilitário do mundo dos vestibulares e seu escopo é tão pequeno que a busca pelo verdadeiro saber é algo irrelevante, e a educação então serve apenas para decodificar ‘zeros e uns’ como se isto fosse a causa final da vida de seres tão complexos como o gênero humano, cuja a única diferença ontológica dos animais é o pleno exercício da razão e do saber prático.
E se a escusa recaísse sobre o argumento de que a educação então serve para “arrumar um bom emprego”, o tal teria de se contentar em ter encontrado o sentido da vida num escritório, numa oficina ou em qualquer outro posto de trabalho, uma vez que resta muito pouco fora do exercício da razão para o ser humano, ou ainda, e num dos mais lastimáveis desfechos, aquela busca por status social ou a eterna promessa de um emprego melhor, sabedores de que quaisquer ofícios que sejam, por mais importantes na conjuntura social, jamais esgotam a realidade mais personalíssima de um sujeito, restando então tantas áreas ainda mais importantes como família, amigos, sociedade e o próprio ser. O minuto após as “dezoito horas” do expediente o reclama sempre de volta às áreas que vão além dos vínculos empregatícios.
Não parece ser a isso tudo que a razão mais básica se presta ou aponta, e, desta feita, uma vida de estudos, a educação e a busca por sabedoria, não se reduzem em uma atividade subordinada – em função de alguma outra coisa que não ela mesma – mas se trata sobre o sujeito mesmo, não impondo a este limite regulamentado por uma tarefa – passar em provas, ser admitido em um emprego e afins, mesmo que tais coisas, per si, tenham seu valor. Mesmo a nobre busca por melhor poder econômico, desde que ponderada, não é um fator excludente da necessidade e missão de educar a si mesmo, uma vez que o nosso ser (eínai) e os dilemas da vida cotidiana exigem tal postura de nós.
No exercício da razão em busca de conhecimento o saber se completa, e se o saber perpassa pelo estudo das causas, o conhecimento se completaria em conhecermos a Causa Primeira, o Summum Bonum, o próprio Deus, mas a questão de alta complexidade pode ser sintetizada nas verdades contidas no aforismo socrático:
“Uma vida sem exame (de si mesmo) não merece ser vivida.”
Como no caso de um desavisado viajante que pensa sobre todas as coisas relativas à sua viagem – roteiros, datas, alimentação – esquece-se de que não tem dinheiro para as passagens, assim é a educação quando pensa sobre todas as coisas – de política ao comportamento alheio – sem pensar sobre o fator primordial que dá sentido a todas as outras coisas, o exame de si mesmo e de sua conduta.
Em busca dos sábios
Fato é, a educação parece, ou pelo menos pode servir a algo maior, e tanto mais o ser humano conhece a própria realidade por meio da especulação e aquisição de um repertório que tange diversas áreas do conhecimento, passando de um espírito a outro, corrigindo o primeiro pelo segundo, tanto mais evidente o enunciado aristotélico se manifesta: “todo o homem, por natureza (tou eidenai, oriundo de einai, ou seja, seu próprio ser, sua humanidade), tende ao conhecimento”.
A despeito de indivíduos que negam pelas ações insensatas a máxima aristotélica enunciada acima, o abandono da busca pela verdade e como consequência a extinção do sábio, parece ter nos lançado no turbilhão execrável dos discursos de autoridade: Se eu não sei, e sequer posso saber – porque não tenho as credenciais corretas como diplomas e outros papéis – resta-me apenas confiar numa famigerada sabedoria coletiva cuja atuação esmagou o polímata, enquanto me contento em viver de uma gota de tinta em meio a imensa pintura chamada realidade, ou como se diria, minha especialidade acadêmica.
O chamado pelos sábios acompanha o clamor por um olhar mais introspectivo a fim de encontrar em nós mesmos as razões da sede incessante pelo saber, e não em nossas atribuições, ofícios, diplomas e etc. Nossas atribuições frente a todas as esferas sociais não prescindem o que há de mais profundo no ser humano e as inclinações que o tornam ontologicamente únicos, e que o amarram ao que é transcendental.
Resgatar o sábio não significa um resgate por mera vaidade de um arquétipo esquecido; representa o resgate da causa final do homem e de todos os elementos que o fazem não somente avançar tecnologicamente em busca de soluções, mas também aprender a lidar consigo mesmo e ovacionar o que é bom. Essa trajetória parece iniciar com o entendimento de que um sábio não encontra limites na busca pela razão mais lapidada, e que, à vista disso, um sábio que arroga para si o título de “sábio” tornar-se-á automaticamente uma contradição de termos, uma aberração do ponto de vista lógico.
Portanto, o que buscamos para além de pessoas comprometidas com o exercício irrestrito da razão em prol do Bom, do Belo e do Verdadeiro, é este idealtypus que se dirige a fazer da sabedoria um modus operandi para vida em quaisquer dimensões, não se eximindo de buscar em tudo e em cada oportunidade a virtude e o bom proceder, para que pelo exemplo, não acadêmico, mas integral, inspirem outros a andar pelas boas veredas.
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