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É comum a associação dos escritos de J. R. R. Tolkien ao cristianismo, contudo, deveríamos nos perguntar esta é uma associação legítima? E o que dizer sobre as diversas alegorias criadas em torno de seus livros? O que o Autor de uma das mais brilhantes sagas diria? Esse pequeno ensaio nos ajudará a refletir sobre o que o escritor pensava acerca destes usos de sua obra.
Tolkien “alegórico”?
É quase impossível ler o nome “Tolkien” sem rapidamente lembrarmos de sua famosa trilogia: O Senhor dos Anéis. Claro, há um bom motivo para isto: A obra já atingiu a casa de 150 milhões de cópias, sendo um dos maiores best-sellers de todos os tempos.
A notoriedade dos escritos de Tolkien tem sido objeto de diversas críticas literárias, como a oferecida no livro The Ring and the Cross de Paul Kerry (O Anel e a Cruz – tradução livre), textos explorando a obra e uma infinidade de analogias, esta última sendo usada até mesmo para explicar fenômenos políticos.
Fato é que a obra caiu nas graças de cristãos e não-cristãos, mas é notável a habilidade do primeiro grupo de extrair diversas lições, ensinos, analogias, simbolismos e por diversas vezes, alegorias dos livros de Tolkien, talvez por este ser um cristão professo, mas sobretudo, porque a obra de fato contém diversos elementos que são facilmente ligados a fé cristã.
Bem, embora seja recorrente o uso da obra para interpretar, contextualizar ou explicar diversos conceitos da realidade ou até mesmo da narrativa bíblica através da literatura de Tolkien, fazendo uso de alegorias, existe algo sobre o autor que poderia anular todos estes usos, alguns dos livros da literatura tolkieniana ou no mínimo nos levar a uma análise mais cautelosa sobre o assunto.
Diferentemente de seu amigo C.S. Lewis, e seus escritos na saga As Crônicas de Nárnia, Tolkien possuía uma conhecida aversão a alegorias.
Diante disto, uma infinidade de usos e interpretações no livro entram em crise. E se tornamos as coisas um pouco mais complexas? Nada mais justo do que deixar o próprio autor se explicar:
“Quanto a qualquer significado oculto ou ‘mensagem’, na intenção do autor estes não existem. O livro não é nem alegórico nem se refere a fatos contemporâneos […] Mas eu cordialmente desgosto de alegorias em todas as suas manifestações, e sempre foi assim desde que me tornei adulto e perspicaz o suficiente para detectar sua presença”.
Em outra ocasião, Tolkien afirma:
“Não me sinto sob qualquer obrigação de adequar minha história à teologia cristã formalizada”.
O Paradoxo
Como entender o autor após ler ou assistir a cena icônica de Gandolf, O Cinzento, depois de sua suposta morte na briga contra o Balrog, aparecer de forma gloriosa para Aragorn, Gimli e Legolas agora como Gandolf, O Branco. Um cristão poderia rapidamente ligar este fato a morte, ressurreição e transfiguração de Cristo, e o deveria de fato fazer. Tolkien provavelmente concordaria. Veja uma outra afirmação de Tolkien em As cartas de J. R.R. Tolkien:
“O Senhor dos Anéis obviamente é uma obra fundamentalmente religiosa e católica. Inconscientemente no início, mas conscientemente na revisão”
O cenário todo começa a se tornar paradoxal. Se por um lado temos um Tolkien receoso quanto aos escritos de Lewis e narrativas como o Rei Artur por conta de suas explícitas alegorias aos objetos da fé cristã, por outro, temos um Tolkien aparentemente incorrendo no mesmo que apontou, ao explicitar claras evidências da narrativa bíblica em seus enredos, e sejamos honestos, como não interpretar o Um Anel, Sauron, cada um dos indivíduos da Sociedade do Anel e Gollum com diversos contextos das Escrituras? E como não o fazer após uma clara declaração de Tolkien sobre a essência cristã da obra?
Entendendo Tolkien
Há algo muito importante sobre a declaração anterior de Tolkien. Quando o Escritor declara acerca da essência cristã e religiosa da obra: “Inconscientemente no início, mas consciente na revisão”, Tolkien está traduzindo a sua liberdade de escrita quando começou a obra, mas ao terminar, identifica os diversos elementos cristãos que emergem da obra. Deveras, a mente de Tolkien era embebida das Escrituras, vemos isto muito claramente na deliberada escolha da data da queda de Sauron e a destruição do Um Anel serem no dia da Anunciação, a partida da Comitiva do Anel para Valfenda ser no Natal ou a estrutura do canto Élfico no casamento do Rei ser estruturada no Livro de Cantares.
Embora seus livros fossem escritos a partir de uma mente cristã, todos os seus enredos eram a comunicação de uma ficção livre para um leitor livre, ou melhor, a comunicação de um escritor preso em seu mundo para um leitor preso em seu próprio mundo. E nem sempre este leitor era um cristão.
Embora a obra seja “interiormente” cristã, não o é “exteriormente”. No máximo os livros de Tolkien são “pré-cristãos”, segundo o Dr. Philip Ryken, que aponta ainda que Tolkien recebeu influências tanto pagãs quanto cristãs ao escrever O Senhor dos Anéis.
Tolkien respeitava a liberdade do leitor de fazer suas próprias conexões entre o livro e seu modo de ver einterpretar o mundo e o papel da ficção neste processo. Nas palavras de Tolkien:
“Quanto mais ‘vida’ uma história tem […] mais prontamente seus leitores tecerão associações com suas convicções ou interpretarão seu sentido de modos que reforcem suas crenças.”
Neste sentido, um cristão pode legitimamente correlacionar a obra de Tolkien com elementos da fé cristã, principalmente por esta absorver, em sua concepção, elementos cristãos, mas leitores não-cristãos podem tecer outras conexões com base na obra, e estas não necessariamente serem menos legítimas. Talvez a maior indagação seja quanto ao uso desta correlação.
Alegoria x Aplicabilidade
Não deveríamos apreciar os escritos de Tolkien esperando encontrar Cristo explicitamente demonstrado e explicado nos diversos personagens de O Senhor dos Anéis, como o é em As Crônicas de Nárnia.
Em O Senhor dos Anéis, os elementos cristãos são inerentes à obra e não extrínsecos, eles não encontram definições prontas em personagens prontos, ao qual podemos facilmente apontar como algo cristão. Pelo contrário, tais elementos surgem da movimentação dos personagens, de seus caracteres, das cenas da trama. Sabemos que há diversos conceitos cristãos na obra, embora não podemos apontar indubitavelmente que tais conceitos estivessem de antemão no imaginário de Tolkien, isso seria alegoria. Por outro lado, podemos tecer nossas próprias concepções com relação à obra, fazendo uso do nosso próprio universo imaginativo e não baseado nas inferências do que Tolkien teria ou não em mente ao escrever suas trilogias, isso é aplicabilidade, o que Tolkien abertamente apoiava.
Tolkien tinha muito bem definido o porquê da aversão a um conceito e afeição a outro. Isto porque a diferença entre aplicabilidade e alegoria era fundamentalmente clara na mente de Tolkien:
“Acho que muitos confundem ‘aplicabilidade’ com ‘alegoria’; mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do autor”.
Talvez esta seja uma das grandezas da obra, a liberdade que Tolkien assegurava a imaginação de seu leitor.
Como arautos de Cristo, nossa mente redimida deveria tecer associações com Cristo em toda e quaisquer circunstâncias, o campo imaginativo não está fora do domínio de Cristo. Em certa, ocasião Tolkien ainda afirmou que “Deus era Senhor: […] também dos elfos”. Podemos inferir então que a Terra-Média está sujeita aos pés de Cristo, mas ainda que não estivesse, nossa missão é levar “cativo todo o entendimento à obediência de Cristo”, crendo que Ele é o Senhor até mesmo de nosso imaginário.
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