Como apresentado anteriormente em nosso último texto (veja aqui), os níveis de leitura, baseados na obra clássica Como Ler Livros de Mortimer Adler, são um guia para o universo da interpretação textual. Como mencionado, o autor primeiramente discorre sobre o nível Inspecional, onde ele estimula o leitor a ter uma postura ativa e exigente diante da obra, mas fazendo-o com o objetivo de absorver o tema geral, captar o todo do livro, para então se aprofundar e entender a obra no próximo nível, que ele chama de Analítico, objeto da nossa reflexão abaixo.
O Nível de Leitura Analítica é caracterizado pelo processo de dissecação do livro, onde o leitor irá identificar as partes e fazer a sua relação com o todo, que absorveu no estágio anterior, da leitura Inspecional. Sua tarefa agora é absorver os conceitos, os assuntos principais, a divisão estrutural que o autor construiu seus argumentos para responder o seu “problema”, ou seja, o que o motivou a escrever. Adler divide em 3 etapas que iremos analisar em seguida, primeiramente, algumas regras para descobrir o conteúdo do livro, depois, regras para interpretar o conteúdo e por fim, regras para criticar o conteúdo do livro. Esse é o caminho que iremos seguir.
Regras para descobrir o conteúdo
Classificar o livro
O primeiro passo para descobrir o conteúdo do livro é classificá-lo, ou seja, que tipo de livro é? Lembrando que as perguntas serão recorrentes, pois o autor defende veementemente o processo ativo de leitura, onde o leitor está em constante diálogo com o autor. A classificação do livro transita pelo gênero literário, pelo objetivo do autor e finalidade da obra, para mais informações ver Divisão literária em Mortimer Adler.
Classificar o livro é a regra fundamental para a boa interpretação da obra, e consequentemente descobrir o seu conteúdo. Inclusive, um dos grandes erros atuais na critica literária pela população geral é ler uma obra em uma perspectiva diferente do que o autor a escreveu, por exemplo, uma coluna de opinião de um jornal como se fosse uma narração de um fato, e não uma opinião pessoal do escritor. Essa dificuldade pode gerar diversos constrangimentos e nos deixa cada vez mais longe da correta interpretação do texto. Portanto, identificar o tipo de livro e o assunto a que se propõe o autor é o ponto de partida para descobrir o conteúdo do livro.
Fazer um resumo breve
Após o processo de leitura Inspecional, em que o leitor se dedicou a captar a ideia do todo da obra, um exercício interessante é resumi-la. Não de modo amplo e completo, pelo contrário, o autor sugere o menor resumo possível. Diz ele que o objetivo é expressar a unidade do livro no menor número de palavras, ele sugere um curto parágrafo. Como exemplo ele apresenta o resumo feito por Aristóteles, em sua obra Poética, sobre a Odisséia de Homero:
“Um homem solitário vagueia, durante anos, em terras estrangeiras; ele é vigiado pelo ciumento Poseidon, que o impede de voltar, e fica desolado. Em casa, os pretendentes de sua esposa lhe devoram os bens e ameaçam a vida de seu filho. Quando, finalmente, consegue regressar, ele revela a alguns sua identidade, ataca e destrói os inimigos com as próprias mãos e salva-se”
Pensando no tamanho da obra original, que varia em torno de 500 páginas, a depender da versão, o resumo consegue absorver com exatidão o teor geral da obra em pouquíssimas linhas. Esse é o conselho de Adler, faça um brevíssimo resumo do todo da obra.
Radiografar o livro
O próximo passo, talvez um dos mais fundamentais e intrigantes apresentados pelo autor, é o processo de radiografar o livro. Ele defende que para compreender efetivamente a obra, é necessário “encaixar o todo na sua unidade e a unidade no todo”. Portanto ele apresenta uma ferramenta para fazer isso, que seria o procedimento de dissecar o conteúdo da obra. Entender como o livro foi organizado em seus pormenores. Por exemplo, ele apresenta uma estrutura como a seguinte, a primeira divisão é em Partes, que podem se dividir em capítulos e esses capítulos se dividem em seções e essas seções em argumentos. Portanto, existe um caminho do macro para o micro que o autor construiu seus argumentos. É portanto fundamental encontrar e entender esse fio de Ariadne que carrega a alma da obra.
O leitor pode estar se perguntando se vale a pena gastar tanta energia e tempo para esse processo. Nesse momento cabe um comentário pessoal. Quão cansativo e frustrante é chegar ao fim de uma obra e não lembrar o seu conteúdo, ou ainda, por mais que lembre do geral, ainda muitas coisas não adentraram para o nosso interior. E quando um livro é realmente impactante, temos que voltar para lê-lo outras diversas vezes. Não pela complexidade do livro, mas por nossa incapacidade de absorvê-lo.
Diante disso, esse processo de se dedicar com profundidade ao livro (importante ressaltar, o autor fala de obras Clássicas, ou seja, de obrar muito específicas que foram escritas pelos grandes homens da história e que merecem a nossa atenção completa) irá proporcionar uma sensação de dever cumprido ao finalizar a obra e ter a capacidade de reconhecer que absorveu tudo quanto podia do autor. Para obras clássicas, esse deve ser o nosso grande objetivo
Descobrir e definir o problema do livro
Prosseguindo, a última regra para descobrir o conteúdo do livro é identificar o “problema” que motivou o autor a escrever a obra. Qual a motivação, o que ele queria passar, qual mensagem ele gostaria de transmitir? Ter isso em mente de modo claro é fundamental para a leitura e compreensão da obra, pois tudo que o autor fará durante o livro deverá cumprir o propósito de responder a essa questão, é atingir esse objetivo.
Para o leitor atento, exigente e ativo, como defende Adler, apenas depois de entender o que o autor está se propondo a responder é que poderá, de forma honesta, interpretar efetivamente a obra. Após ter passado por todo esse caminho, de classificar o livro, de fazer um resumo conciso, de radiografá-lo em seus pormenores e finalmente entender a grande questão do autor é que se deve prosseguir para as regras que objetivam interpretar o conteúdo.
Regras para interpretar o conteúdo
Entrar em acordo com o autor
A primeira, e uma das mais importantes ações de um leitor ativo e exigente é compreender que o autor se localiza em um contexto específico. Esse elemento é fundamental para interpretar o conteúdo de uma obra. Um conceito pode (e é comum que aconteça) variar a depender da época que é utilizado, ou das pressuposições do autor, ou ainda o seu contexto cultural, político, econômico, suas influências e tantas outras variáveis. Diante disso, entrar em um acordo com o autor é um atestado de honestidade, para posteriormente possibilitar a crítica da obra.
Para entrar em um acordo, é necessário entender qual o sentido exato que o autor está usando aquele termo específico. Por exemplo, o modo como Platão utiliza a palavra amor, é diferente do modo como Agostinho a utiliza (por mais que tenha sido influenciado por ele), que é por sua vez, diferente do modo como Freud utiliza. Portanto, não posso ler Freud interpretando sua concepção de amor de modo diferente do que ele próprio está dizendo. Isso é entrar em acordo com o autor e com suas palavras-chave.
Aprender as proposições principais
Após entrar em acordo com o autor, é imprescindível encontrar quais são as principais proposições do autor. Ou seja, onde está o cerne da sua construção textual. O que ele toma como ponto de partida para posteriormente construir seus argumentos? Novamente, fazer perguntas ao texto é a grande regra para absorver e apreender o que o autor propõe.
As proposições são as unidades lógicas em que o autor baseia suas respostas. Uma frase simples pode expressar diversas proposições, mas também uma proposição pode ser expressa por duas ou mais frases.
Identifique os argumentos e como foram construídos
Partindo para a construção efetivamente do fio que conduz o texto do autor, identificar os argumentos e como foram construídos é o passo final para interpretar o conteúdo da obra. Após encontrar e compreender as proposições, os argumentos irão se unir a elas e construir efetivamente a resposta do autor à pergunta (ou objetivo) inicial que o motivou a escrever. Entender a unidade lógica da obra, portanto, é ser capaz de entender a própria obra.
Um argumento pode ser expresso em uma única e complicada frase, ou ainda em várias frases que formam um parágrafo (ou mais de um). Novamente, por isso a necessidade de ressaltar que não é um caminho simples, a correta interpretação de um conteúdo importante exigirá muito esforço e dedicação por parte do leitor.A grande missão do leitor, portanto, é saber quais são os argumentos com clareza e como ele se relaciona na defesa do todo.
Determine quais problemas foram resolvidos e quais não foram, e se o autor está ciente
Finalmente, após concluir o estágio das regras para interpretar o conteúdo, será possível determinar quais problemas foram resolvidos e quais não foram, além disso, saber se o autor está ciente que não os resolveu. Entendendo o objetivo ou pergunta inicial como o fio condutor da obra, a finalidade da escrita será responder ao questionamento inicial. Diante disso, ao final da análise de dissecação da obra, deve ser perceptível ao leitor identificar se o autor conseguiu cumprir seus objetivos iniciais, ou não. No caso de não ter cumprido, se ele sabe que não o fez.
Esse estágio é importante para as regras da próxima etapa, que será como criticar o livro. Um livro só deve ser criticado se compreendido corretamente. E para isso, as regras anteriores, tanto para descobrir o conteúdo como para interpretá-lo são fundamentais.
Regras para criticar o conteúdo
Não critique até ter feito a leitura analítica
Se direcionando agora para a última etapa, que como mencionado anteriormente deve ser obrigatoriamente precedida pelas anteriores, objetiva-se criticar o conteúdo. Para isso, o leitor não deve criticar até ter feito a leitura analítica com empenho e ter chegado às conclusões necessárias.
Pode parecer um caminho árduo até a etapa atual, no entanto é necessário relembrar que o autor se refere a obras clássicas, ou seja, o que de melhor foi produzido na história da humanidade. Portanto, são obras que valem o tempo e energia dedicados a compreendê-las em sua inteireza. Isso posto, deve-se lembrar da reverência e respeito a esses grandes autores, que não apenas podem, mas devem ser criticados, no entanto após o leitor realmente compreender os pormenores que constituem a obra, para então sim se dedicar a apresentar suas opiniões divergentes.
Se discordar, faça com argumentos, não com opiniões
Talvez o grande dilema da sociedade moderna, criticar sem entender. Na perspectiva de que os estudantes e os cidadãos de modo geral devem ser críticos, a sociedade aceita a crítica de qualquer forma, advinda de qualquer um. No entanto, isso gera um problema, um grande problema, criticar sem entender. O que é claramente um contrassenso. Se discordar, faça com argumentos, não com opiniões.
Deve-se chegar diante de um grande autor com humildade suficiente para aprender e ávido pelo conhecimento sem preconceitos ou pressupostos, mas com compromisso com a verdade. No entanto, também é verdade que até mesmo os grandes livros e grandes autores podem e erram. Diante desse fato, Adler apresenta quatro maneiras concretos para se discordar de uma obra, são elas:
1º Autor está desinformado
Ou seja, falta conhecimento relevante ao autor sobre o problema que tenta resolver. Apenas se for relevante para o problema que ele se propõe a resolver. Mas essa crítica só pode ser concreta se você, leitor, puder apontar quais conhecimentos faltam ao autor, mostrando com isso a relevância para as conclusões do problema que ele propôs responder.
2º Autor está mal informado
Ou seja, ele afirma algo que não condiz com a realidade. Nesse caso, novamente a crítica deve ser feita se a afirmação dever conexão direta e necessária com a conclusão que o autor propõe, como por exemplo em parte fundamental de uma argumento imprescindível para a defesa de sua tese.
3º Autor foi ilógico
Ou seja, não possui coerência entre os argumentos e a conclusão. Existem basicamente dois tipos, ou a conclusão não guarda relação necessária com as raízes oferecidas. Ou quando o autor afirma duas coisas que são incompatíveis entre si.
4º Análise está incompleta
Ou seja, não resolveu o que se propôs, ou ainda não utilizou adequadamente o material de que dispunha. Não observando todas as implicações e ramificações, falhando em distinguir os aspectos relevantes da empreitada em que se propôs.
Retomada e próximos passos
Chegamos ao meio do caminho, após falar sobre os primeiros estágios da leitura exigente, Elementar e Inspecional ,falamos nesse texto sobre as grandes regras para realmente entender o conteúdo de um livro. Dissecá-lo em suas partes, identificar seus argumentos, entender a estrutura para poder fazer o principal, encaixar a parte no todo e o todo na parte. Após isso realizado com esmero, se propõe a criticar o livro, com a elegância de alguém que está interessado em debater ideias e não opiniões, não tendo compromisso com o erro, mas em uma constante busca pela verdade.
Em nosso próximo e último texto iremos nos adentrar no último nível de leitura, que também é o mais complexo e profundo de todos, a Leitura Sintópica. Ela se propõe a colocar o leitor como protagonista, fazendo com que ele participe ativamente das conclusões e use os grandes autores para debater suas ideias, com o objetivo de chegar a uma conclusão, que pode não estar especificamente em nenhum deles, mas da união de vários.
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